sábado, 5 de julho de 2008

Bossa Triste

Bossa 1

Tenho pena da galera de hoje, que só conhece músicas como a Festa no Apê, estilos como o funk, o rap, o hip-hop, o dance e outros estilos que nem sei o nome. Esse pessoal talvez não tenha tido a oportunidade de conhecer a Bossa Nova. Provavelmente não conheceu a harmonia, a melodia, a poesia, a contemplação. Não se apaixonou platonicamente e nem viveu amores inocentes e leves, tão bem traduzidos pelas canções daquele tempo.

Entendo o tipo de gente que diz que o João Gilberto, por exemplo, é um chato. Quem diz isso não consegue ter a leitura dele que as pessoas da época tiveram. Não entende a genialidade que o seu jeito de tocar violão trouxe à sua geração, não se deixou apaixonar pela doçura de sua voz baixinha, macia, por sua excêntrica mania de ser perfeccionista no que faz.

A Bossa Nova não proporciona as grandes emoções e os suores dos trios elétricos e dos bate-estacas dos anos 2000 mas, em compensação, permite o pulsar dos sentimentos mais íntimos, fazendo bater o coração não pelo estouro da caixa de som mas pelo arrepio, pela identificação com a letra, pela cadência envolvente da batida e pela sedutora musicalidade dos acordes elaborados.

Ao sair da sala de cinema com minha mãe, após ver o documentário Coisa Mais Linda, sobre a história da Bossa Nova, revivi em flashes momentos de minha infância ouvindo o som que mamãe ouvia. Percebi, durante o filme, que ela se emocionou relembrando sua juventude, suas paixões, o Rio de Janeiro, o início de Brasília, a música e o fascínio despertado por Tom, Vinicius, Dick Farney, Carlos Lyra e tantos outros. Eu também me emocionei - sem tanta propriedade, é claro, lamentando não ter vivido isso em idade adulta e lastimando a falta de essência, de sonho e de poesia da juventude rave.

Sou de uma geração entre esses dois mundos, tendo ainda recebido a influência romântica dos que vieram antes de mim e agora assistindo, pasma, à mistura de tudo e à falta de algo que fique do que é produzido pelos que vieram depois de mim. Como diz a música Velhos e Jovens, de Péricles Cavalcanti e Arnaldo Antunes, “estamos todos aqui”...

Hoje temos sons divertidos, intrigantes, dançantes que ficam nos ouvidos por insistência da mídia, do lobby das rádios que tocam repetidamente e, assim, fazem vender a ‘música’ mesmo que não tenha letra alguma – ou apenas um refrão com alguma mensagem ininteligível – e que possa ser tocada com dois ou três acordes simples. Se o objetivo é fazer mexer, dançar, cantar, de repente o exercício é válido. Para quê, afinal de contas, esperar alguma mensagem ou intelectualidade das músicas? A genialidade não pode ser para todos. Perderia a graça.

Bossa 2

Hoje foi um dia forte. Antes da Bossa cinematográfica, em casa, soube que minha faxineira estava a um passo de cometer uma loucura. Havia saído de casa decidida a abandonar o marido, os filhos, a casa. Deixara as malas prontas.

Veio trabalhar normalmente sem saber o que faria depois disso. Trouxera consigo a sexta filha, de colo. Sim, ela tem seis filhos e não sabe o que fazer com eles. Filha de mãe solteira, ela mesma não teve uma família e agora se vê incapaz de seguir adiante, confrontada com problemas e dramas do cotidiano e da convivência com suas “crianças”.

O filho mais velho, de quinze anos, parece ter problemas de aprendizado e uma doença que enfraquece os ossos e favorece fraturas. De muletas, auxilia em casa e, não se sabe como, toma conta dos irmãos e das irmãs mais novas quando a mãe sai para trabalhar.

Os filhos do meio são rebeldes. Um acaba de ir morar com o pai, revoltado com a mãe ou enciúmado pela presença de um novo padrasto, não se sabe bem. O outro foi recentemente flagrado num pequeno furto e apanhou em casa por causa disso. Revolta-se talvez por esperar inconscientemente que, cometendo pequenos delitos, receba atenção, educação e não repreensão física. Dizem que toda criança precisa de limites...

A filha mais velha mal saiu da adolescência e já teve um bebê. Vez por outra, volta para casa com a criança debaixo do braço e se escora na mãe. Não contribui e nem ajuda em nada, não lava um garfo, uma roupa sequer. Vê televisão o dia inteiro. Desperdiça água. Come e bebe às custas da mãe e do padrasto.

No meio disso tudo, eis que surge a figura do marido-padrasto. Um ex-amigo da filha mais velha. Pela descrição, parece um sujeito correto, participativo, respeitoso e atencioso para com a esposa, bem mais velha do que ele. É pai do bebê, o último – por ora – dos seis filhos. Trabalha e ajuda a pagar as despesas, a comida para todos eles.

Num arranca-rabo no dia anterior, o ex-marido, pai do quarto e da quinta dos seis filhos, disse-lhe uma série de desaforos. Um homem que, mesmo intimado pela justiça e não cumprindo a determinação de pagar pensão às crianças, de repente se vê com autoridade para pregar um sermão na ex-mulher por supostas omissões do dia a dia...

Olhando toda a novela de fora, eu chutaria que todo o conflito pode ter sua origem no simples fato de existir uma relação de amor entre a mãe de família e o jovem marido. Nem os filhos, nem os ex-maridos talvez tenham capacidade de compreender que possa existir amor ali. E nem ela própria talvez esteja preparada para viver uma situação inusitada de amor e nem tenha a capacidade para se impor diante de toda a pressão. De se impor ensinando e exigindo respeito dos filhos. De se impor como mulher. De fazer respeitar seu direito de ser feliz.

Aliás que direito? Consciente da dureza que é a sua vida, ela teme uma nova gravidez. E eu também temo por ela. Temo e lastimo a omissão do Estado e a perversidade da Igreja condenando até mesmo a expressão “controle de natalidade”. Falei sobre isso numa crônica há algum tempo e insisto em bater na mesma tecla – e em outras teclas adjacentes. Quem sabe um dia não consigo compor acordes que se façam ouvir pelas autoridades, que sensibilizem e conscientizem a sociedade para a necessidade de mudanças nas leis e práticas existentes!

Minha faxineira tem mais de 40 anos, tem seis filhos entre os quais um com problema neurológico e outro com problemas comportamentais. Não tem boa estrutura emocional nem instrução ou preparo para educá-los a contento e nem condições ideais para sustentá-los e, ainda assim, procura fazê-lo com braveza e dignidade – isso quando não pensa em desistir de tudo...

Ela tem o direito de ser feliz sim!

Tem o direito de ligar suas trompas, se assim o desejar. Tem o direito a educação para suas crianças e para ela mesma, pois não pôde continuar seus estudos como um dia sonhou. A amar e a ser amada – e não rechaçada por isso. Tem o direito a saúde, a cultura de qualidade. A se apaixonar e a um dia, por que não, conhecer a Bossa Nova e outras formas de arte às quais ela não teve ou tem acesso.

A existência humana pressupõe condições dignas de vida. Não permitir tais condições nem proporcionar oportunidades equânimes a todos é incorrer em crime contra a própria existência.

Bossa 3

A Bossa Nova me faz sonhar com um mundo de paz, de sentimentos bonitos, puros e transparentes, que parece ficar cada dia mais para trás. Por sorte tenho o privilégio de voltar no tempo, ouvir CDs, ver documentários, tocar violão e cantar com amigos as músicas que eu quiser ouvir.

Mas lamentavelmente não posso deixar de ouvir o choro e de ver a tristeza no olhar da minha faxineira, totalmente entregue pela falta de sonho, de esperança, de bossa.

Nenhum comentário: